sábado, 29 de setembro de 2012

Trechos aletários de "Livro do Desassossego" (Bernardo Soares)

     Envelheci pelas sensações...Gastei-me gerando os pensamentos... E a minha vida passou a ser uma febre metafísica, sempre descobrindo sentidos ocultos nas coisas, brincando com o fogo das analogias misteriosas, procrastinando a lucidez integral, a síntese normal para se denegrir [?]
     Caí numa complexa indisciplina cerebral, cheia de indiferenças. Onde me refugiei? Tenho a impressão de que não me refugiei em parte nenhuma. Abandonei-me, mas não sei a quê.
      Concentrei e limitei os meus desejos, para os poder requintar melhor. Para se chegar ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos um porto, um só, firme, e partir dali para Indefinido.
       Hoje sou ascético na minha religião de mim. Uma chávena de café, um cigarro e os meus sonhos substituem bem o universo e as estrelas, o trabalho, o amor, até a beleza e a glória. Não tenho quase necessidade de estímulos. Ópio tenho-o eu na alma.
       Que sonhos tenho? Não sei. Forcei-me por chegar a um ponto onde nem sabia já em que penso, com que sonho, o que visiono. Parece-me que sonho cada vez de mais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionável.
       Não faço teorias a respeito da vida. Se ela é boa ou má não sei, não penso. Para meus olhos é dura e triste, com sonhos deliciosos de permeio. Que me importa o que ela é para os outros?
       A vida dos outros só me serve para eu lhes viver, a cada um a vida que me parece que lhes convém no meu sonho.

       252.      Pensar, ainda assim, é agir. Só no devaneio absoluto, onde nada de activo intervém, onde por fim até a nossa consciência de nós mesmos se atola num lodo - só aí, nesse morno e húmido não-ser, a abdicação da acção competentemente se atinge.
       Não querer compreender, não analisar...Ver-se como à natureza; olhar para as suas impressões como para um campo - a sabedoria é isto.

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