quinta-feira, 19 de maio de 2011

Trechos aleatórios "Livro do Desassossego" (Bernardo Soares)

349.
Amais vil de todas as necessidades – a da confidência, a da confissão. E a necessidade da alma de ser
exterior.
Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do peso dos seus segredos,
dizendo-os; mas ainda bem que os segredos que digas, nunca os tenhas tido. Mente a ti próprio antes de
dizeres essa verdade. Exprimir é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.

350.
Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei
que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o
tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente,
outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou  lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja
natureza ignoro.
Julgo, às vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que uma moldura para enquadrar o que
lhe é estranho. Na recordação, que tenho da minha vida passada, os tempos estão dispostos em níveis e
planos absurdos, sendo eu mais jovem em certo episódio dos quinze anos solenes que em outro da
infância sentada entre brinquedos.
Emaranha-se-me a consciência se penso nestas coisas. Pressinto um erro em tudo isto; não sei, porém,
de que lado está.  É como se assistisse a uma sorte de prestidigitação, onde, por ser tal, me soubesse
enganado, porém não concebesse qual a técnica, ou a mecânica, do engano.
Chegam-me, então, pensamentos absurdos, que não  consigo todavia repelir como absurdos de todo.
Penso se um homem que medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indo depressa ou
devagar. Penso se serão iguais as velocidades idênticas com que caem no mar o suicida e o que se
desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente sincrônicos os movimentos, que ocupam o mesmo
tempo, em os quais fumo um cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente.
De duas rodas no mesmo eixo podemos pensar que há sempre uma que estará mais adiante, ainda que
seja frações de milímetro. Um microscópio exageraria este deslocamento até o tornar quase inacreditável,
impossível se não fosse real. E por que não há o microscópio de ter razão contra a má vista? São
considerações inúteis? Bem o sei. São ilusões da consideração? Concedo. Que coisa, porém, é esta que
nos mede sem medida e nos mata sem ser? E é nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe,
que o sinto como uma pessoa, e tenho vontade de dormir.

Um comentário:

Anônimo disse...

segredos realmente tem um peso insuportável...
mas as vezes, pra não ferirmos pessoas é necessário que saibamos suportar esse peso