quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Fabricação do passado, anseio de futuro e desespero do consumo (Mario Sérgio Cortella)

Desde sempre, e mais ainda nestes tempos, nossos grandes medos vêm do escuro. O homem não teme o que vê, mas o que não vê.

Uma das clássicas imagens do medo e do terror está naqueles olhos que podem ser vistos na penumbra sem que se consiga identificar de quem são, se de homem ou animal, se de vampiro ou algo mais assustador.

Há 50 ou 60 anos, nos antigos seminários, conventos e colégios religiosos, havia um quador, nos dormitórios, nos mictórios, no refeitório. Era um quador do olho de Deus dentro de um triângulo. Abaixo da imagem, havia esses dizeres: "Deus vê tudo".

Nas tradições gregas, romama e judaica, a visão de Deus ou dos deuses é terrível. Está aí a origem do terror diante de Deus: ser visto sem poder vê-lo. Ser visto sem saber como ele te vê. Não ser visto por você mesmo, mas ser visto só por ele. Como é uma situação sem saída, uma das maneiras que se encontrou de afastar o terror foi pintá-lo, retratá-lo de um maneira menos agressiva. Surge então a imagem do senhor de barba branca, com jeito severo mas também paternal e amoroso.

O islamismo, por sua vez, é genial na manutenção do terror religioso (terror no seu sentido etimológico, de espanto); não há nem pode haver imagem de Alá, ou de Maomé, seu profeta. Como ele não morreu, pois foi levado aos céus, ele continua te vendo, sob a égide eventual do "ao infiel, a espada". A propósito, uma das forças do cristianismo também está no fato de que não existe cadáver de Jesus, na crença do adeptos, pois ele não morreu; foi para os céus. A vitória da vida sobre a morte - que é o segredo do cristianismo - é a vitória da luz sobre a sombra.

O mundo medieval é um mundo de sombras. Mas o mundo que nasce com a Renascença é mundo da gravura, da pintura, da imprensa, da exposição.

Você quer coisa que exponha mais do que a imprensa? O escritor Guy de Maupassant tem uma frase bem-humorada e maldosa que aponta o alcance dessa invenção: "Ao alfabetizar o vulgo, a tolice se liberta". Com a popularização de jornais, livros e revistas, as pessoas podem não só ler besteiras mas também escrevê-las e divulgá-las. A imprensa libertou a exposição e a internet a elevou à enésima potência.

Agora eu posso entrar no Google e ver quantas referências existem a meu respeito. Se não as encontro, isso é desesperador. De certa forma, o Orkut, o Facebook e o Twitter diminuem essa angústia - embora a substituam por outra. Nas comunidades vituais, você cria suas referências e, sobretudo, vê e é visto. Por outro lado, as pessoas passam a se afligir numa competição desesperadora para ver quem consegue mais seguidores.

O anonimato, como antes falei, é o desespero. Para escapar desse subterrâneo, dessa penumbra numa sociedade que incentiva o consumo, o que resta às pessoas que não querem se identificar com o grotesco é tentar se destacar com a propriedade de bens. A capacidade de consumir, portanto, é o que vai dar valor às pessoas. E elas se sentirão mais valorizadas à medida que tiverem O carro, A tv, A roupa. Obviamente, os bens atribuem valor variam conforme a camada social a cada qual pertence.

As camadas populares buscam coisas que brilham, indicadores de futuro, da luz no final do túnel. Por isso, compram móveis de fórmica ou latão dourado. Móveis novos com linhas e cores futuristas, como são a maioria das cozinhas pré-moldadas.

Já a burguesia não quer futuro, por isso já está quase garantido. A burguesia quer passado, que é algo que não tem. Como muitos de nós somos filhos de imigrantes, de gente que deixou seu país natal sem recursos, a atual burguesia das capitais não tem berço, tradição, heráldica - por isso muitos compram em sites especializados a origem e o brasão da família.

Numa cidade como São Paulo, a classe média vai às feirinhas de anguidades na praça Benedito Calixto ou vão na do MASP para comprar a cristaleira da vovó, a poltorna dos anos 1930, a luminária da décadas de 1940 ou a mesa que veio de um fazenda do século passado - mesa que nunca é reformada, que é comprada para permanecer descascada, algo que nunca se verá nas casas populares. Nessas, móvel descascado é sinal de miséria. Na do burguês, de riqueza, pois o antigo tem valor.

É uma tendência tão forte que até se criou uma indústria de construção do antigo - Embu das Artes, em São Paulo, ou Tiradentes, em Minas Geraias, por exemplo, são polos de artesanato do passado, de fabricação das mais novas antiguidades que se podem adiquirir.

Nesses lugares, no fundo, as pessoas vão atrás do conforto e da segurança de ter uma herança, um passado, uma história, uma família. Não deixa de ser outro sinal de desespero, ou infelicidade - nas feiras de antiguidade, é comum ver casais andando de mãos dadas em busca de laços que deem sentido a sua vida, não raro medíocre.

As camadas populares não precisam disso, pois já têm família. Aliás, sem família a vida não existe, pois não há como existir em meio à miséria sem laços. Família não quer dizer apenas pai, mãe, filhos, avós, primos e tios. No caso, é uma família ampliada que engloba vizinhos, a mulher da casa da esquina que empresta o açúcar, o cara da frente, aquele que tem carro e leva quem precisa ao hospital de madrugada. A burguesia, por sua vez, se dá o direito de nem saber o nome do cara que mora na porta ao lado, pois pensa não ter nenhuma necessidade dele.

De qualquer modo, a família é um ninho de afeto e todos precisamos de afeto. Mas, no caso da burguesia, a família precisa ser construída por laços de história, ou laços de família.

A idéia de família ainda é estranha ao mundo burguês. Karl Marx estava certo ao dizer que o capital destruiu a família. Já a probreza - que não foi atingida pelo capital a não ser como vítima - é solidária. Os vizinhos cuidam dos filhos da casa ao lado quando os pais estão no trabalho. Se o barraco desmorona, todo mundo que morava lá encontra abrigo na casa de alguém, pois, dizem, "onde comem cinco, comem dez". A burguesia, por sua vez, não sabe o que fazer nem como os pais idosos. Em vez de abrigá-los em sua moradia, paga para alguém cuidar deles em uma casa de saúde.

A burguesia também quer solidez. Por isso compra móveis pesados, camas de ferro, estátuas de bronze.

O proletariado quer leveza, quase nada escuro - de pesada, já basta a vida -, quer cores. Isso é assim no mundo todo - na África, principalmente na porção Sul da África, por exemplo, as pessoas se vestem com roupas coloridas, vibrantes.

A burguesia cultua o escuro, o tédio. Na Europa, o movimento punk, o movimento dark nascem ligados à idéia de um mundo que não lhes serve, um mundo impregnado de riquezas - mas é a mesma riqueza que os sustenta. O movimento hippie das décadas de 60 e 70, do qual fiz parte, carregada a idéia da simplicidade - e a simplicidade era o brilho. Era o Flower power, o poder da flor, da cor; não o da olheira, do rímel, da Amy Winehouse.

Alguns lugares do Brasil ainda guardam o passado belo e simples, como Penedo e Visconde de Mauá, onde moram o que chamo de "viúvas de John Lennon", e onde há a maior concentração de óculo redondos do país. Assim como há os ninhos do pesado, do escuro, da balada gótica.

O gótico é o terror presente na vida - nos tempos medievais, as catedrais góticas eram propositalmente gigantescas, altíssimas, para que o homem se sentisse pequeno e diminuído diante de Deus. Como tendência, o gótico é sucedio pelo rococó do Barroco, pelo exagero do detalhe como diferencial (o punk, o gótico, o dark não deixam de ser o rococó revisitado, com seus cintos e braceletes com tachinhas, seus alfinetes, sua maquiagem escura e exagerada).

E o Barroco e seus rococós são substituidos, na Europa, pelo Romantismo, um movimento que é iluminado, que não tem nada de escuro - na música, por exemplo, surge Mozart, que consegue fazer uma missa de réquiem absolutamente esplendorosa.

Não é causal que a última obra de Beethoven seja uma ode à alegria.
Ainda bem; é a luz de novo.

Um comentário:

Greyce Kelly Cruz disse...

com certeza é a luz
me clareou